Eu ainda não amo a minha casa. Desejei tanto a mudança que aconteceu há pouco mais de dois meses, mas não sou capaz de dizer que amo o lugar onde moro agora.
Nas primeiras semanas, quando tudo é euforia e arrumação, eu achei que já a amasse. Com o passar do tempo, fui conhecendo seus pequenos defeitos. A porta que tem que ser puxada um pouquinho pra fora pra chave poder girar. A descarga que às vezes emperra. O ralo solto do banheiro.
Mas nada disso se compara ao silêncio. Ele, e não eu, parece ser o dono da casa. Na casa dos meus pais, ele era raro e eu passava os dias esperando pelas brechas em que ele aparecia. Aqui, ele é inteiro, constante, só eu o interrompo. Quebro o silêncio com música, podcast, com o bom dia para o meu cachorro. Mas às vezes eu não sou suficiente e o silêncio me engole.
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Dois meses se passaram e falta aprender a fazer feijão, falta trocar a lâmpada que tá piscando, falta comprar uma televisão. Falta pendurar os quadros que trouxe, falta colocar cor nas paredes, falta um cheiro específico pra que eu chegue e sinta e pense “estou em casa”.
Este texto não é um lamento, eu sei que tudo é processo. Sei que 27 anos vivendo no mesmo lugar não podem ser comparados a dois meses em outro, por mais que o segundo tenha sido tão desejado.
Sei que tenho que ter calma.
Eu vou aprender a amar a minha casa, eu vou aprender a acompanhar o silêncio. Clarice escreveu que “depois do medo, vem o mundo”, só que o mundo continua dando medo. Mas eu também vou aprender a conviver com ele.
Acredito que seja a última do ano. Obrigada a quem continua abrindo esses e-mails. Feliz ano novo, que venha o medo e que venha o mundo. <3
Que seu sentimento de casa chegue em breve, Emília!
Seu texto me fez lembrar de dois trechos de livros de que gosto muito, os quais compartilho contigo:
"Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.
(Lavoura Arcaica - Raduan Nassar)
"Não um flat. Não um apartamento de fundos. Não a casa de um homem. Não a de um pai. Uma casa toda minha. Com a minha varanda e o meu travesseiro, minhas lindas petúnias roxas. Meus livros e minhas histórias. Meus dois sapatos esperando ao lado da cama. Ninguém para ameaçar com um pedaço de pau. As tralhas de ninguém para recolher. Apenas uma casa silenciosa como a neve, um espaço para eu mesma ir, limpa como papel antes do poema.
Eu gosto de contar histórias. Eu as conto dentro da minha cabeça. […] Eu faço uma história para a minha vida, para cada passo que meus sapatos marrons dão. […]
Nós não moramos desde sempre na Rua Mango. Antes disso, nós moramos na Loomis, no terceiro andar, e, antes disso, nós moramos na Keeler. Antes da Keeler, foi na Paulina, mas o que eu lembro mais é da Rua Mango, da casa triste e vermelha, da casa à qual eu pertencia, mas não pertencia.
Eu ponho no papel e então o fantasma não dói tanto. Eu anoto e a Mango diz adeus às vezes. Ela não me agarra com os dois braços. Ela me liberta. Um dia eu vou arrumar minhas malas de livros e papéis. Um dia eu vou dar adeus à Mango. Eu sou forte demais para que ela me prenda aqui para sempre. Um dia eu vou embora.
Amigos e vizinhos dirão: O que aconteceu com aquela Esperanza? Para onde ela foi com todos aqueles livros e papéis? Por que ela marchou para tão longe?
Eles não saberão que eu fui embora para voltar. Pelos que eu deixei para trás. Pelos que não podem sair."
(A casa na Rua Mango - Sandra Cisneros)
Um abraço!